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6 de abril de 2020

Reflexos jurídicos da pandemia: Covid-19 e contratos

Por

Arlete do Rocio Marcondes Grandi[1].

 

Diante do cenário caótico instalado a nível mundial em decorrência da Síndrome Respiratória Aguda Grave – 2, causada pela transmissão desenfreada de seu agente causador (o vírus então denominado “Covid-19”), é importante reconhecer que determinados aspectos da nossa vida cotidiana estão sujeitos a mudanças drásticas com a pretensão de salvaguardar o maior número de pessoas, ou então com o intento de se reduzir a rapidez com que essa mesma doença se espalhe.

Isso, por óbvio, exige que existam determinadas providências a serem tomadas pelo poder público de modo a assegurar, em primeiro lugar, o bem-estar da população e, salvaguardado este, adotar medidas de preservação ou então recuperação da economia. Uma vez que o presente texto tem a finalidade de propiciar uma informação de fácil acesso ao leitor (que não necessariamente está integrado a um ambiente onde se utiliza a linguagem jurídica com frequência), a ideia é entregar uma conclusão enxuta.

Comecemos com a noção de que todos os contratos devem ser obrigatoriamente interpretados de acordo com o princípio da boa-fé objetiva, o que dentro da relação consumerista implica na incidência de uma leitura que sempre seja mais favorável à parte hipossuficiente – no caso, o consumidor[2] em si. Isto significa dizer que, diante de cenários como o atual (de ausência de segurança, de instabilidade, de perigo social), sempre se deve assumir uma postura que venha em encontro do melhor interesse daquele que depende de uma tutela do Poder Judiciário, através do trabalho de seus advogados.

Isso é visível em diversas circunstâncias dentro da sociedade, dentre as quais citam-se, por exemplo, as renegociações estimuladas pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional[3] e pelo Itaú Unibanco S/A[4] neste momento de calamidade. Tais atitudes são louváveis, uma vez que sua finalidade última é promover a existência de uma realidade que traga a menor agressão possível para o consumidor dentro do cenário atual, mas é importante lembrar que fazem apenas parte de um todo.

Refiro-me aqui ao que é conhecido dentro do Direito Civil como “teoria da imprevisão”. Ou seja, os negócios jurídicos que deveriam continuar conforme pactuados e dentro de certa regularidade vêm-se diante da necessidade de uma adequação anormal, decorrente de um cenário de instabilidade que se instala sem depender da vontade de cada um dos interessados, o que é o caso que se vislumbra hoje em escala mundial.

Sob a alcunha do termo em latim “rebus sic stantibus” (“as coisas devem permanecer como estão”), a teoria da imprevisão afirma que elementos do negócio que se tornem excessivamente onerosos para uma das partes por conta do mencionado “aspecto imprevisível” podem e devem ser reformados pelo Poder Judiciário. Ou seja, significa dizer que qualquer contrato que, outrora normal, agora se mostra excessivamente “pesado” para qualquer um deve ser modificado, de modo a adaptar o negócio jurídico e seus contratantes à nova realidade que se vê.

Dentro desse assunto, é relevante explicar como que tal cláusula (rebus sic stantibus) pode e deve ser aplicada:

 

“Exige-se um motivo imprevisível (art. 317) ou acontecimentos imprevisíveis e extraordinários (art. 478). Eis aqui o grande problema da teoria adotada pelo CC/2002, pois poucos casos são enquadrados como imprevisíveis pelos nossos Tribunais, eis que a jurisprudência nacional sempre considerou o fato imprevisto tendo como parâmetro o mercado, o meio que envolve o contrato e não a parte contratante. A partir dessa análise, em termos econômicos, na sociedade pós-moderna globalizada, nada é imprevisto, tudo se tornou previsível. Ilustrando, não seriam imprevisíveis o aumento do dólar, o desemprego ou a escala inflacionária quanto ao último evento: (STJ, REsp. 87.226/DF, 3.ª Turma, Rel. Min. Costa Leite, j. 21.05.1996, DJ 05.08.1996, p. 26.352). Em suma, o apelo a tal análise torna praticamente impossível a revisão de um contrato civil. Como bem aponta Ênio Santarelli Zuliani a respeito da análise do fator imprevisibilidade, “não cabe esperar que os acontecimentos sejam espetaculares, porque, se não for minimizado o conceito de magnitude, poder-se-á estagnar o instituto no reino da fantasia”. Para flexibilizar tal interpretação, parte da doutrina recomenda que o evento seja analisado tendo como parâmetro a parte contratante e não o mercado. Neste sentido, o Enunciado n. 17 CJF/STJ, da I Jornada: “a interpretação da expressão “motivos imprevisíveis” constante do art. 317 do Código Civil, deve abarcar tanto causas de desproporção não previsíveis como também causas previsíveis, mas de resultado imprevisíveis”. No mesmo sentido, o Enunciado n. 175CJF/STJ, da III Jornada: “A menção à imprevisibilidade e à extraordinariedade, insertas no art. 478 do Código Civil, deve ser interpretada não somente em relação ao fato que gere o desequilíbrio, mas também em relação às consequências que ele produz”. Em outras palavras, são levados em conta critérios subjetivos, relacionados com as partes negociais, o que é mais justo do ponto de vista social. Isso seria uma espécie de função social às avessas, pois o fato que fundamenta a revisão é interpretado na interação da parte contratante com o meio, para afastar a onerosidade excessiva e manter o equilíbrio do negócio, a sua base estrutural”. (grifei). TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil – Volume Único. 4.ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Forense/São Paulo: Editora Método, 2014, pág. 617/618.

 

Conforme trecho doutrinário acima, a pretensão da cláusula rebus sic stantibus é reconhecer a necessidade de alteração e adequação dos contratos de modo a manter sua continuidade e existência, sem condenar os negócios à extinção. Os exemplos citados acima (relativos à Procuradoria da Fazenda e ao Itaú Unibanco S/A) são reflexos dessa previsão legal, mas é importante lembrar ao leitor que sua aplicação não se resume a uma renegociação. O trabalho de reestabelecimento de equilíbrio contratual pode e deve ser feito pelo profissional competente, no caso, o advogado.

De forma mais contundente, o que se vê também é reflexo direto desse entendimento nos contratos de locação. Sendo de conhecimento notório e público, o locatário inadimplente está sujeito à ação de despejo[5] caso não cumpra suas obrigações para com o locador; porém, como tal medida corresponde à exposição do cidadão devedor ao ambiente público (o que deve ser evitado, como medida de contenção do Covid-19, conforme prescrito pela Organização Mundial da Saúde[6]), o que se vê hoje são medidas conjuntas de iniciativa tanto do Poder Legislativo como do Judiciário para providenciar alguma espécie de amparo àqueles que devem fazer uso de seu patrimônio para, neste momento de pandemia, incertezas e irregularidades, terem condição de ter acesso à alimentação básica e manutenção de sua saúde ao invés de sofrer sanções pelo inadimplemento de contratos.

O Tribunal de Justiça do Estado de Goiás[7] já notifica a adoção de medida no sentido de impedir o imediato despejo de locatários inadimplentes, enquanto que o Presidente da Comissão de Direitos Humanos na Câmara dos Deputados fez apelo ao Min. José Antônio Dias Toffoli (presidente do Supremo Tribunal Federal) providências para salvaguardar a população em estado de necessidade diante da crise econômica e sanitária em voga, de modo a suspender eventuais reintegrações de posse determinadas em seu desfavor[8].

Porém, à medida que mais salta aos olhos é o conjunto de projetos de lei em trâmite na Câmara dos Deputados[9], cujo teor é justamente o de afastar os efeitos de despejos e de prejuízos ao exercício do direito de posse nestes estados de calamidade pública.

 

PL 827/2020

(Deputado Federal André Janones – AVANTE/MG)

Assim, o presente projeto de lei propõe alterar a legislação vigente, para dispor sobre a possibilidade de suspensão por 90 (noventa) dias, da execução das ordens de despejo de locações de imóveis residenciais e comerciais utilizados por microempreendedores individuais (MEI), microempresas e empresas de pequeno porte, enquanto durarem os esforços de combate e prevenção do COVID-19.
PL 1090/2020

(Deputada Federal Maria do Rosário – PT/RS)

A presente proposição vai ao encontro da teoria da imprevisão, já consagrada no direito civil brasileiro, ao mesmo tempo em que preserva o direito à moradia e de trabalho, dado que muitos empreendimentos econômicos também necessitam pagar aluguel para os seus estabelecimentos manterem-se em funcionamento.

Salientamos que a presente proposição tem o cuidado de não eximir do compromisso de pagamento o locatário, uma vez que a ideia aqui proposta procura adiar o pagamento para a cessão da declaração do estado de emergência ou calamidade pública em até um ano após o fim dos seus efeitos.

Justifica-se esse prazo porque o locatário ao término do estado extraordinário deverá retornar ao pagamento do aluguel corrente.

Assim, seria excessivamente oneroso exigir o pagamento do aluguel devido durante o estado de emergência ou calamidade pública cumulado com o aluguel corrente.

Dessa forma, nos parece razoável sugerir que este aluguel possa ser pago em até um ano antes de ensejar a possibilidade de ação de despejo para que o locatário possa retomar os seus rendimentos ao mesmo patamar anterior ao estado extraordinário que afetou sua atividade econômica ou laboral.

PL 1028/2020

(Deputado Federal Júnior Mano – PL/CE)

Diante de quadro social de tamanha gravidade, que tende a agravar significativamente a calamidade pública gerada pela disseminação do vírus, propomos a suspensão das ações de despejo por 90 (noventa) dias para as locações de imóveis urbanos que se encontrem em locais em que tais medidas de enfrentamento à pandemia tenham sido tomadas. Em momento de comoção social, da ponderação entre o direito à renda mensal do locador e do direito à moradia do locatário, resulta que o despejo por falta de pagamento (ou por insuficiência da garantia) se afigura desproporcional e injusto, pois exigirá o dever de pagar daqueles que não têm sequer como trabalhar. Para garantir a efetividade da norma, suspendem-se igualmente os efeitos da denúncia do contrato de locação, a fim de que não se burlem os objetivos da proposição.

Do ponto de vista das empresas, sobretudo as menores, sem faturamento não há como fazer face a aluguéis sem que haja o risco de falência. Convém, portanto, que se tomem providências no sentido de evitar que a já combalida economia brasileira sofra outro duro golpe: a inviabilização de retomada das atividades quando futuramente superada a crise de saúde.

PL 1062/2020

(Senador Irajá – PSD/TO)

Estabelece medidas para diferir o pagamento e proibir a suspensão da prestação de serviços públicos essenciais e o despejo por falta de pagamento de aluguel, durante o Estado de Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional (Espin), declarado em razão da pandemia do Covid-19.

(…)

Considerando o estado atual das relações sociais, nada mais prudente do que explicitar que os serviços de telecomunicações englobam, além da telefonia fixa, a telefonia móvel e a comunicação de dados por banda larga, especialmente, considerando que os dois últimos garantem a manutenção de uma série de empregos, cujas atividades podem ser realizadas de forma remota para garantir a continuidade da produção de várias empresas e indústrias de vários setores e seguimentos inclusive de serviços essenciais, visando sempre criar condições para que não ocorra paralisia total do país, com objetivo claro que a economia se recupere em um curto espaço de tempo.

 

Concluindo, a ideia do texto foi a de reforçar a informação de que a população não pode permanecer desamparada diante do cenário crítico que se apresenta, existindo meios de adequar suas situações particulares em face da realidade que se se impõe nesse momento de crise – cabendo, sempre, ao advogado mediar estes interesses junto ao Poder Judiciário, cumprindo então com a função que lhe foi atribuída pela Constituição Federal de 1988 que, em seu art. 133, define a presença de tal profissional como “indispensável à administração da justiça”.

Entendemos também que, diante da situação de calamidade pública, o parcelamento e suspensão de cobrança de dívidas também se mostram como medidas adequadas com a finalidade de propiciar a manutenção dos negócios jurídicos em todas as esferas do Direito.

[1]      Advogada inscrita junto à OAB/PR com o n. 39.518, sócia integrante do quadro da banca Hasson & Advogados Associados.

[2]      Conforme art. 47 da lei federal n. 8.078/1990

[3]      https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2020/03/18/covid-19-faz-pgfn-suspender-cobrancas-e-facilitar-renegociacao-de-dividas.ghtml (acessado em 01/04/2020)

[4]      https://www.itau.com.br/coronavirus/ (acessado em 01/04/2020)

[5]      Conforme art. 59 e seguintes da lei federal n. 8.245/1991.

[6]      https://www.who.int/health-topics/coronavirus#tab=tab_2 (acessado em 01/04/2020)

[7]      https://www.tjgo.jus.br/index.php/institucional/centro-de-comunicacao-social/17-tribunal/19459-despacho-suspende-despejo-em-razao-da-pandemia-do-novo-coronavirus (acessado em 01/04/2020)

[8]      https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/noticias/cdhm-pede-a-toffoli-suspensao-de-reintegracoes-de-posse-e-despejo-objetivo-e-conter-avanco-do-coronavirus-entre-os-mais-pobres (acessado em 01/04/2020)

[9]      Mediante consulta em https://www.tjdft.jus.br/institucional/relacoes-institucionais/proposicoes-legislativas-2013-covid-19-coronavirus (efetuada em 01/04/2020)

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