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15 de April de 2020

O que muda nas relações contratuais com a aprovação do Projeto Lei nº 1179/2020?

Por

Andrea Barros, Milena Mazzarotto e Romy Becher

Como resultado de ação conjunta, em medida de urgência, do Legislativo, do Judiciário e de instituições de ensino superior, no intuito de conter os efeitos jurídicos da pandemia do COVID-19 foi aprovado, em 03/04/2020, o Projeto de Lei nº 1179/2020 com propostas de flexibilização de algumas regras das relações jurídicas de Direito Privado. As medidas adotadas em razão da referida norma devem viger até 30 de outubro de 2020.

O objetivo é estabelecer algumas regras temporárias que possibilitem a suspensão de determinações legais impostas ordinariamente, amenizando possíveis consequências socioeconômicas desvantajosas durante o período da pandemia do COVID-19.

Importante mencionar que referido projeto, inspirado em lei francesa criada para regulamentar relações no pós-guerra, sem alterar a legislação até então vigente, sugere, igualmente, uma lei com efeito temporário, que, portanto, não altera a disciplina de outras legislações, mas a forma como elas serão aplicadas, diante do contexto da pandemia. Portanto, não se trata de suspensão de leis ou de cancelamento de vigência, mas de modulação da sua aplicação.

O Projeto de Lei foi pautado, basicamente, em oito eixos do Direito Privado, quais sejam: (i) alterações em termos de prescrição e decadência; (ii) alterações no Código de Defesa do Consumidor; (iii) esclarecimentos sobre revisão contratual; (iii) alterações na disciplina de usucapião; (iv) alterações na disciplina da lei antitruste; (v) alterações na disciplina de pessoa jurídica; (vi) alterações nas relações dos motoristas de aplicativo e taxistas e; (vii) flexibilização da fiscalização dos órgãos nacionais de trânsito.

Neste contexto, o texto aprovado inclui questões que vão desde aquelas relativas a contratos de locação; regras das relações condominiais; relações de consumo; societárias, inventários e partilhas até redução de repasse feito pelos motoristas de aplicativos às empresas, Lei de Proteção de Dados e prisão domiciliar para devedores de pensão alimentícia, por exemplo.

De modo geral, nos termos do art. 3º do PL, os prazos prescricionais consideram-se impedidos ou suspensos, conforme o caso, a partir da vigência da Lei até 30 de outubro de 2020.

Nas relações consumeristas, suspende a aplicação do direito de arrependimento previsto no art. 49 do CDC na hipótese de produto perecível ou de consumo imediato e os farmacêuticos adquiridos por delivery.

Isso é, o direito de arrependimento diz respeito à possibilidade de o consumidor desistir da compra de um produto ou serviço adquirido fora do estabelecimento comercial dentro do prazo de 7 dias. Em razão do isolamento social, muitas lojas passaram a fornecer seus produtos via delivery e, por isso, o que o PL pretende é que, durante esse período de pandemia, o consumidor não tenha o prazo de 7 dias para manifestar seu arrependimento, imotivadamente. Contudo, isso não afasta o seu direito de recusar a efetivação da venda caso verifique alguma imperfeição no produto no momento em que o recebe das mãos do entregador.

Importante frisar que os produtos aqui mencionados são aqueles como alimentos e medicamentos, de tal forma que a norma não atingirá o direito de arrependimento no caso de aquisição de outros produtos e serviços.

Quanto às relações locatícias, prevê que não serão concedidas liminares para desocupação de imóveis urbanos, em algumas das hipóteses nas quais normalmente são concedidas, até 31 de dezembro de 2020 nas ações de despejo ajuizadas a partir de 20 de março de 2020. Quanto aos pagamentos dos alugueres pelos locatários residenciais, havia, inicialmente a previsão de suspensão dos pagamentos, no entanto, o texto não foi aprovado, sob o fundamento de proteção daqueles cuja renda depende diretamente dos alugueres recebidos.

Relativo às disposições específicas quanto à usucapião (“adquirir pelo uso”), teve suspenso o curso dos prazos previstos no Código Civil Brasileiro (CCB) a partir da data da entrada em vigor da lei até 30 de outubro de 2020, respeitando o direito adquirido.

Como uma forma inicial de aquisição da propriedade de bens móveis ou imóveis prevista no (CCB), a usucapião pode ser reconhecida quando alguém utiliza determinado bem como se fosse seu, sem interrupção, durante certo período de tempo.

Os prazos são de 2,  5, 10 ou 15 anos para os imóveis e de 3 ou 5 anos para móveis, a depender da existência de justo título e boa-fé (10 ou 15), abandono de lar conjugal (2) ou ainda, de forma especial (5) quando a ocupação torna efetiva a função social da propriedade. A suspensão prevista refere-se a esses períodos.

Nas relações condominiais residenciais, conferiu poder emergencial ao síndico para limitar e ou restringir a realização de reuniões ou festas bem como utilização dos espaços comuns, inclusive uso do estacionamento privativos por terceiros, bem como autorizou a realização de assembleias condominiais e votações por meio virtual.

No tocante à disciplina de pessoa jurídica, dentre outras previsões, houve a prorrogação dos prazos para realização de assembleias e reuniões, as quais podem ser realizadas, inclusive, de forma remota, e dos prazos de divulgação ou arquivamento de demonstrações financeiras.

No âmbito do direito de família e sucessões, foi alterado para domiciliar o regime da prisão por dívida alimentícia. No caso da instauração de processos de inventário e partilha nas sucessões abertas a partir de 1º de fevereiro de 2020, o termo inicial será considerado somente a partir de 30 de outubro de 2020 e, nas sucessões abertas antes de 1º de fevereiro de 2020, o prazo de 12 meses para que seja ultimado o processo de inventário e de partilha, ficará suspenso até 30 de outubro de 2020.

Por fim, o PL também autoriza que o Contran (Conselho Nacional de Trânsito) edite normas para permitir que os veículos circulem durante o período de calamidade pública, com cargas maiores do que o limite de peso permitido.

Ainda, adia para 1º de janeiro de 2020 a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados, exceto os artigos relativos a sanções, os quais ficaram alterados para vigorar apenas em agosto de 2021.

O Direito Privado exige estabilidade. Apenas com isso é que é possível fomentar um ambiente produtivo, de circulação de riquezas e de construção de prosperidade.

O PL foi desenvolvido justamente com a ideia de propor um regime jurídico que trouxesse previsões específicas aplicáveis a situação pandêmica vivenciada e inibir comportamentos oportunistas.

Neste sentido, o PL traz os artigos 6º e 7º com previsões que visam, principalmente, afastar os comportamentos oportunistas e a judicialização excessiva. Vejamos:

O art. 6º prevê, em suma, que que as consequências jurídicas da pandemia, inclusive no que diz respeito ao caso fortuito e força maior, já previstos no art. 393, do Código Civil,  não terão retroeficácia, ou seja, não poderão ser aplicados a inadimplementos contratuais anteriores à pandemia. Esta previsão visa evitar a transformação da crise decorrente da pandemia em uma oportunidade para salvar um contrato já inadimplido.

É importante mencionar, no entanto, que tal regra não deve ser considerada absoluta, devendo ser aplicada caso a caso. Há situações em que determinado contrato já estava inadimplido antes da crise pandêmica, mas poderia ter sido colocado em dia e a pandemia acabou por inviabilizar tal regularização. Nestes casos, entende-se que a pandemia deverá, sim, ser considerada como evento de caso fortuito ou força maior para fins de renegociação. Tratam-se, portanto, de casos em que o inadimplemento foi anterior à pandemia, mas, nem por isso, a renegociação deve ser vista como “comportamento oportunista”.

O art. 7º, por sua vez, prevê que a mudança no valor de moeda, a mudança cambial e a inflação não correspondem a fatos imprevisíveis, para os fins da resolução por onerosidade excessiva trazida pelos arts. 478, 479 e 480 do Código Civil. Trata-se, em verdade, da enunciação de maneira descritiva daquilo que os tribunais regionais e o próprio STJ já vem construindo como jurisprudência ao longo do tempo, tendo em vista as crises econômicas já vivenciadas no Brasil.

Importante lembrar que o CDC, por exemplo, já prevê a possibilidade de revisão de cláusulas contratuais que gerem onerosidade excessiva. A Lei de Locações, por sua vez, também permite a revisão contratual nos casos em que houver discrepância entre o valor praticado e o valor de mercado.

No mais, sabe-se que tais dispositivos foram incluídos com o objetivo de evitar a judicialização demasiada, o que, de certa forma, já adianta que o entendimento judicial a respeito do tema seguirá esta orientação. Assim, há uma preocupação com a interpretação generalizada das demandas judiciais neste contexto como se “comportamento oportunista” fosse, sem, no entanto, observar cada caso com suas peculiaridades.

Diante dessa preocupação é que se recomenda categoricamente que sejam feitas renegociações entre as partes interessadas, de forma direta ou via medidas alternativas à judicial, como a mediação e a arbitragem, que são métodos de resolução de conflitos que levam em consideração a vontade das partes em primeiro lugar.

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